quarta-feira, 26 de abril de 2017

Você é o meu sol




"Saudei o sol, levantando a mão direita, 
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus, 
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada."
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)



Ao amanhecer: o nascer do sol.

Você é ainda criança. Corre pelo quintal. Brinca de Comandos em Ação. Solta o Puma. Aprende a andar de bicicleta sem as rodinhas de proteção lateral (cedo demais).

Eu nasci.

Você ainda é criança e aprende a me amar. O ciúmes dos primeiros meses passam, segundo nossos pais, rapidamente. Era inverno. E você, filho do outono, aqueceu minhas manhãs. Meu raio de sol.

Antes do meio dia:

Você está adolescente. Tem os cabelos negros e lisos. E o sorriso mais bonito do mundo. Além dos olhos azuis (também) os mais bonitos do mundo. E eu quis ter a cor de seus olhos e chorava porque os meus não eram azuis, quando eu aprendi a me expressar.

Você e eu brincamos. Você me ensina a subir no muro da casa da vovó para ver tudo do alto. Primeiro diz que é para eu ficar sentada, olhando como eu devo me equilibrar. Até eu aprender. Até você ter confiança para descer e me deixar sozinha em cima de um muro bastante alto para fazer pão com mel para mim. Eu adoro: o muro, devido a altura, o doce do mel e você. Nós passamos horas como gatos em cima do muro, nos equilibrando, e sempre descíamos antes que os nossos pais chegassem em casa.

Certa vez, eu estava passando a tarde no alto da árvore de jabuticaba e ouço alguém me chamar. Era do outro lado do muro, divisa com a Escola Estadual. Eu olho. Me viro. Era uma menina adolescente me perguntando o nome do menino dos olhos azuis que brincava comigo. Meu irmão. Tenho raiva. Ela também te acha bonito! Mostro a língua. Nossos seis anos de diferença de idade me permitem fazer isso. Mas digo: “meu irmão, Jorge Luiz”. Eu deveria estar tão irritada com aquela adolescente, porque eu nunca te chamei de Jorge Luiz (a vovó Edla te chama assim). Para mim: Ju, Juninho.

Ainda pela manhã: O sol está atravessando pelo leste.

Você já apresenta uma barba rala e falha (foi sempre assim). Você resolve fazer uma tatuagem no bíceps à direita. Uma lua crescente. Ridícula! Até que nossos pais descobrem... Não me recordo se houve desaprovação. Talvez tenha havido pois você era adolescente. E para consertar, você fez um unicórnio, com a lua atrás e duas estrelas.

São dez horas: o sol contínua ao alto. Brilha forte.

Sua letra é linda. E o seu coração também.

Eu começo a sair e a paquerar. Você é um irmão ciumento e espanta todas as possibilidades dos garotos chegarem em mim. Eu vou ao Saloon (antigo bar marianense) e você manda eu sair lá de dentro todas as vezes em que me encontrou e fala que já é hora de eu ir para casa, senão você mesmo me levaria ou contaria aos nossos pais. Eu roubo um Free Box de nossos pais, você percebe e briga feio comigo. E então, todas as vezes em que eu saia à noite, você chegava próximo de mim na rua e falava “deixa eu cheirar sua boca!”. Eu dizia: “sai fora, Ju!”. Você respondia: “Lalá, to de olho. Fica esperta!”. Eu fiquei.

Você começou a namorar. Sua namorada é legal e sempre me defende quando você dizia que eu não podia fazer algo devido a minha idade. Até mesmo você se convencer que eu estava crescendo e me levou diversas vezes à noite para passear em Ouro Preto! Eu me sentia gente grande. Eu adorava.

Um dia você falou: “chega ai, Lalá, vou te mostrar uma música”. Era Pink Floyd, Wish You Here Were. Desse dia em diante, todas as vezes em que essa música tocou eu me lembrei de você. E após sua ida, esta música continuou a marcar meu caminho. Como no dia em que comprei meu primeiro carro. Eu estava na concessionária, ainda em dúvida, o celular de alguém toca: Bob Dylan e a nossa música Wish You Here Were. Caiu um temporal e apareceu um arco íris no céu (outro símbolo que você me ensinou a amar). Eu fiz negócio. E sei que você ficaria orgulhoso. E eu entendi que você daí estava orgulhoso.

Você é doce, calmo e tranquilo. Você me protege e afasta de mim todos os males.

É meio dia: sol a pino. O zênite.

Hoje é o seu aniversário. De alguma forma, eu mantive o pensamento em você. Eu escrevi a data de hoje várias e várias vezes, conforme eu atendia meus pacientes. E todas as vezes em que eu escrevia 26 de Abril, eu sorria, assim como apertava meu coração. Então, eu mandei uma mensagem para nossos pais muito cedo, pedindo para que eles procurassem uma foto de você de calça jeans e blusa branca sentado comigo vestida de gatinha. Confesso que eu poderia ter pedido nossos pais para procurarem essa foto em outra data, mas não consegui. E finalmente nossos pais acharam (após procurarem por muitas caixas de fotos e provavelmente verem várias de nossa família junta).

Então, eu te abracei e comecei a escrever essa carta de aniversário. Para chegar no céu. Talvez eu amarre o rascunho em uma pipa azul, para que ela suba sem direção.

Hojé, Ju, eu sou novamente a sua concha. E tenho me tornado mais velha de nós dois. Eu deveria te proteger, mas você tornou-se meu anjo guardião.

Hoje, a saudade é maior.

Hoje, o sol teve que brilhar muito mais para aquecer meu coração.

Você é o meu sol. E eu amo você.

Sua irma.
L.





Quando a saudade aperta, escrevo a você.
Jorge Luiz (26/04/1980 - 04/12/2003)

domingo, 5 de março de 2017

Diário Médico: o vento na popa do navio



"Conheça todas as teorias. 
Domine todas as técnicas,
mas ao tocar uma ama humana
seja apenas outra alma humana"
Carl Jung



Marlon, meu paciente desde o primeiro mês em que cheguei aqui, há quase trezentos e sessenta e cinco dias.

Meu paciente que aos vinte e três anos sofreu um traumatismo raquimedular Frankel A, quando pela manhã voltava de motocicleta (ao deixar seu pai no trabalho e regressar ao seu); Quando o motorista infrator o atropelou e não prestou assistência, fugindo do local covardemente, possivelmente mudando o futuro de meu jovem paciente. Bonito, educado, trabalhador e cheio de vida. Meses depois, quando já tínhamos estabelecido uma relação médico paciente sólida ele me contou... que agora o motorista já havia sido identificado e simplesmente declarou "deixa que o seguro cobre". E não disse ao menos "eu sinto muito, meu menino".

Eu senti.

Eu senti muito quando em minha primeira semana, antes de conhecê-lo soube dos fatos. E confesso que senti quando nos conhecemos e que meu coração apertou-se. Mas no primeiro encontro, percebi em seu olhar um brilho de vida. Iriamos readaptar e dar a volta por cima. Conheci sua família pouco a pouco, em cada consulta quando eles o acompanhavam. Até que hoje nos reencontramos. Quando o atendi, e vi você vindo com aquele sorriso bonito eu vibrei por dentro! Creio que atrasei todas as minhas consultas restantes, pois devo ter ficado contigo e sua mãe cerca de uns quarenta minutos. Vibrei por ver que você estava com aquele sorriso e olhar brilhante do dia de minha primeira consulta médica, em uma visita domiciliar. E me senti mais feliz por saber que a sua reabilitação está de "vento em popa", como na linguagem náutica: a popa é a parte de trás de um barco ou navio. Quando o vento sopra na parte posterior do barco (popa), o ajuda a deslizar com mais velocidade para frente. E agora você está fazendo natação, musculação e fisioterapia, além de ter assumido seu trabalho e continuado a viver com a mesma intensidade. Isso é seguir com o vento!

Meu menino, meu querido paciente o mundo é seu! O mundo tem e terá o tamanho dos seus sentimentos: que ao meu ver são infinitos e grandiosos! Aproveito para dizer que um dos significados da palavra "paciente" é: que (ou quem) não desiste, ser perseverante, persistente. E essas qualidades você tem! Enquanto eu te consulto, eu também aprendo muito contigo, Marlon. E eu sou grata por ter te conhecido.

Meu abraço carinhoso,

da Doutora que ganhou um amigo,

Larissa.