domingo, 19 de setembro de 2010

Para você, uma carta


Outra mudança. Em um ano e outra mudança. Seis malas e uma carta na mão.
Abri, sozinha, a porta do elevador e respirei para dentro ou para fora, faltando ou sobrando o ar de meus pulmões. Imaginando e vivendo e inventando. Arrumei as malas de madrugada. Uma semana dobrando minhas roupas após a meia noite. O armário parecia um infinito e dali fui tirando recordações (mais que roupas). Por isso devo ter demorado tanto para finalizar esta etapa da mudança.
Acontecia... Houveram roupas que me fizeram lembrar cheiros, lugares, músicas e pessoas. Era como se cada pedacinho fosse remontado em quebra cabeça. Sentei várias vezes ao chão para dobrá-las ou amarrotá-las em minhas mãos espremendo-as, como se ali fosse também vida. Como se a cada suspiro encontrasse um afago, frágil, inseguro, determinado e perfeito. Os armários tendem a ser armadilhas... por mais que o sol bata e o vento fresco entre. Então, tudo foi devidamente posto em ordem: lembranças e roupas; sapatos e perfumes; canetas e batons. Minha amiga ficou na porta da garagem me esperando... e eu desajeitadamente saindo do prédio com todas aquelas malas, em um indo e vindo infinito... Puxando por rodinhas e alças e na primeira viagem a carta na mão. Aquela carta sua, guardada em meu guarda-roupa, logo na frente, onde inevitavelmente eu olhava toda vez que a porta se abria. Por que ela ainda estava ali? Não, não sei responder a ti. Talvez, porque você ainda esteja aqui, sorrateiramente.
Sim, houveram dias em que te esqueci ali, parado e mesmo quando a porta de meu guarda roupa se abria eu não via a sua carta: tão diferente das demais, tão cheia de mimos, feita demoradamente, embalada, queimada nas pontas, dando ar de amor antigo. Nosso caso... (posso suspirar, amor?!?) é um amor antigo. E a primeira vista, quando chegou por sedex , eu fiquei sentada na varanda, sobre o sol do inverno e céu muito azul sem saber se queria abri-la... Com o coração tremendo (e as pernas também)... Não se ganha cartas de amor tão belas todos os dias... então, eu fiquei segurando a caixinha transparente, sentadinha... e quando resolvi abrir o embrulho (desses que remetem cartas que colocamos em garrafas e mandamos ao mar...) o seu perfume veio junto. Mal-da-de! Você fez tudo de caso pensado! Colocou o seu gracioso cheiro junto a minha carta e eu tive ganas de abraçá-lo forte querendo que voltasse... Ou não sabendo se seria tão boa a sua volta, pois de novo você teria de partir.
Então, pensei nas suas covinhas, neste seu sorriso doce que me fez amá-lo e odiá-lo ao mesmo tempo. Lembrei das suas mãos e das várias cicatrizes que você carrega. Vi-nos sentado ao jardim, num banco ao fim de uma tardezinha gostosa, eu de vestido e você de bermuda, eu de sandália e você de chinelo, meus pés descalços sobre os seus . Meu pé foi a primeira coisa que você tocou forte, seguro, cheio de si, lembra-se? Antes do nosso primeiro beijo você fez massagem nos meus pés e disse como eles eram bonitos! Depois você ficou deitado em meu colo olhando para mim... Como se estivesse enxergando vidas passadas. Olhos mais que sedutores, eram olhos de contemplar estrelas. Disso tudo eu me lembrei enquanto fazia minha mudança...
E no dia, após as férias, em que voltei a meu apartamento novo, ao abrir a porta, sua carta estava ali. Eu a havia colocado em minha escrivaninha, ao lado do meu perfume favorito (aquele que você me deu em um doce Abril...) e eu sorri. Empurrei a mala para dentro e pensei nas últimas frases que você me escreveu:"... se não fosse a lembrança do seu sorriso. Eu te amo mais que tudo e quero passar tranquilamente o resto dos meus dias ao seu lado, Seu..."
PS: sua carta, encerrei de volta ao guarda-roupa...